RIO — Do alto de seus 24% de popularidade, percentual que é motivo de comemoração depois de sua imagem positiva ter ficado vários meses abaixo de 10%, o presidente do Chile, Sebastián Piñera , afirmou recentemente, sem qualquer tipo de debate ou consenso, que o referendo sobre a elaboração de uma nova Constituição poderia ser novamente adiado.
Após a grave crise social que assolou o país em 2019, a votação fora marcada para o final deste mês. Com a chegada da pandemia, que já matou 207 chilenos, o plebiscito sobre a manutenção ou não da Carta Magna deixada pelo ditador Augusto Pinochet (1973-1990) passou para o próximo dia 25 de outubro . Agora, alegando motivos sanitários e econômicos, o chefe de Estado declarou que “talvez isso tenha de voltar a ser discutido”, abrindo um debate em momentos em que manifestações sociais voltam a ser realizadas em Santiago e no interior do país.
O coronavírus, apontaram analistas locais ouvidos pelo GLOBO , acabou sendo um salva-vidas para o presidente chileno. Com a pandemia, Piñera retomou o controle da agenda política nacional, os protestos foram reduzidos e por momentos chegaram a desaparecer, o foco passou a ser o combate ao novo vírus e a contenção das inevitáveis consequências econômicas.
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Recuperação
Com este pano de fundo, o respaldo ao presidente voltou a superar 20% e a aprovação à administração da crise chegou a 35%, baixa em comparação com os mais de 60% de apoio ao presidente da Argentina, Alberto Fernández , mas que mostram uma recuperação do chefe de Estado chileno.
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Pesquisa realizada esta semana pela empresa de consultoria Cadem mostrou não somente que a popularidade de Piñera subiu, mas, também, que 50% dos chilenos estão de acordo com a ideia de postergar novamente o referendo.
— Para Piñera, claramente seria melhor não fazer o referendo este ano. Até março, muitos duvidavam da capacidade do presidente de terminar seu mandato (em março de 2023). Hoje, essa discussão sumiu, e sem referendo o presidente mantém o controle da situação — afirmou Marco Moreno, professor da Universidade do Chile.
Para ele, “Piñera aceitou o plebiscito sobre pressão, foi uma decisão tática, não estratégica”.
— O que vemos é um governo usando o medo do coronavírus e da recessão econômica para desmobilizar a população — enfatizou Moreno.
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O Chile tem hoje 14.365 casos de contágios da Covid-19 e poucos mortos, em comparação com outros países da região como Brasil e Equador. A questão do momento é o chamado “ retorno seguro ”, ou seja, como sair do isolamento social sem provocar uma segunda onda de infecções e, ao mesmo tempo, como impedir que a economia mergulhe numa recessão. O mesmo dilema que enfrentam todos os governos latino-americanos e do mundo, mas que, no Chile, representa uma oportunidade para o governo de Piñera.
— O adiamento do referendo é claramente uma opção que está sendo considerada, o problema é que o governo não explicou bem por que faria isso. As demandas sociais se mantêm, e as manifestações estão, aos poucos, se reativando — alertou Guillermo Holzmann, sócio diretor da Analytyka Consultores.
Os questionamentos não partiram apenas de setores opositores, mas também de membros da coalizão governista Chile Vamos . O deputado e presidente do partido Renovação Nacional, Mario Desbordes, disse ao jornal La Tercera, que “as razões sanitárias são as únicas que justificariam avaliar uma mudança de data do referendo”. Já o prefeito do município de Estação Central, Rodrigo Delgado, da direitista UDI, afirmou que “se decidirmos não votar, tampouco poderemos ir a um centro comercial”.
Novos protestos
Mas, aos poucos, cresce a opinião de que realizar o referendo seria uma loucura em um momento em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) continua recomendando medidas de isolamento social e afirmando que a saída da pandemia será demorada e trabalhosa. Existe, ainda, o custo econômico de realizar uma plebiscito num ano em que a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) prevê queda do PIB regional de cerca de 5% .
Em paralelo cresce, também, a resistência. Vozes opositoras como a do ex-chanceler Heraldo Muñoz , do Partido pela Democracia, do ex-presidente Ricardo Lagos (2000-2006), dizem que Piñera “tensionou ainda mais um momento muito difícil para todos os chilenos”. Grupos radicais estão decididos a voltarem para as ruas de Santiago e outras cidades importantes do país, onde podem ser vistas pichações com legendas como “Piñera, vamos resistir à pandemia para ver você cair”.
— As marchas de 2019 instalaram o debate sobre a desigualdade social, e isso não mudou, apesar de o presidente ter recuperado apoio com a pandemia. Continuamos vendo muita insatisfação na sociedade e ações de vandalismo têm acontecido em regiões do interior, por exemplo, onde a comunidade mapuche é forte — comentou Holzmann.
Por incrível e irônico que pareça, o presidente chileno ganhou oxigênio com a pandemia. Mas, para alguns analistas, poderia estar brincando com fogo ao usar esse oxigênio para forçar situações que poderiam desencadear outra onda de protestos em seu país.