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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

Os romanos já sabiam: “navegar é preciso; viver não é preciso”. Fernando Pessoa (1888-1935) adaptou a “frase gloriosa” a seu próprio gênio: “Viver não/ é necessário; o que é necessário é criar”. Em “Pessoa: uma biografia”, recém-lançada no Brasil, Richard Zenith, um dos maiores estudiosos da obra do poeta fingidor, mostra que o desassossegado lisboeta oscilou sempre entre “o mundo da ação” e “o mundo interior dos sonhos” e, não raro, preferiu criar a viver.

A biografia dá um punhado de exemplos inusitados da disposição de Pessoa de colocar a obra acima da vida. Ele era ligado em astrologia e comunicava-se com espíritos para discutir seus projetos literários. Um deles, um inglês chamado Henry More (filósofo que de fato existiu), disse que o poeta, que à época já beirava os 30 anos, precisava se curar da virgindade. A castidade o impedia de produzir uma obra literária completa. Os espíritos chegaram a indicar algumas candidatas a sua cama, mas ele se limitou a fazer projeções astrais e escrever sobre encontros fictícios, como se tomasse notas para um romance.

“A escrita mediúnica, em vez de motivá-lo a ter uma vida sexual ativa, evitou ou pelo menos adiou a necessidade de sexo real”, escreve Zenith. À certa altura, os espíritos o aconselharam a romper com Ofélia, a única namorada que teve. Segundo o biógrafo, Pessoa provavelmente morreu virgem e “não era heterossexual, homossexual, pansexual nem assexual”. Todavia, escreveu uma pá de poemas libidinosos (hétero e homoeróticos) em português e inglês.

— Pessoa não negou sua sexualidade, mas a realizou através da escrita. Transferiu sua energia sexual para a obra. Os heterônimos, por exemplo, são uma espécie de autofecundação — diz Zenith ao GLOBO, de sua casa em Lisboa. — No fim da vida, Pessoa uniu vida sexual à espiritual. Quando era mais novo, tratava a virgindade como problema. Pensava que não se realizar sexualmente prejudicaria sua obra. Mais tarde, passou a acreditar que a virgindade era uma vantagem em sua trajetória espiritual.

A discussão sobre a arte como expressão da sexualidade de poeta ilustra bem a estratégia à qual Zenith recorreu para driblar a dificuldade de biografar um personagem “fanaticamente reservado”, “cuja vida essencial se passava no imaginário”.

Foto que Fernando Pessoa mandou a Ofélia em 1929, após nove anos afastado — Foto: Divulgação
Foto que Fernando Pessoa mandou a Ofélia em 1929, após nove anos afastado — Foto: Divulgação

O fingidor era sociável, bem-humorado, vivia rodeado de amigos e às vezes exagerava na bebida. Mas não se abria com ninguém. Levou uma vida pacata. Sustentava-se redigindo cartas comerciais em inglês e francês — era melhor que lhe ditassem o que escrever, pois, caso surgisse a chance, começava a fazer literatura ou filosofar. Também trabalhou com publicidade. Criou um anúncio para a Coca-Cola — “No primeiro dia: Estranha-se. No quinto dia: entranha-se” — que, em parte, contribuiu para que o refrigerante fosse banido do país. Segundo o Ministério da Saúde, o slogan era um “convite ao vício”. Portanto, se realmente não havia cocaína na bebida — o que testes já haviam comprovado —, a Coca-Cola era culpada de propaganda enganosa.

Fatos como esses, porém, pouco dizem sobre o escritor Pessoa. Zenith, então, optou por “mapear, na medida do possível, sua vida imaginativa”. Pensou até em escrever em primeira pessoa, fingir que era o poeta que, do além, repassava sua existência. Mas desistiu. À procura do mundo interior de Pessoa, viajou até Durban, na África do Sul, onde ele cresceu, entrevistou descendentes de familiares e amigos do autor de “Mar português” e revirou os arquivos do poeta, que deixou mais de 25 mil papéis em seu famoso baú.

A estratégia de Zenith deu tão certo que “Pessoa: uma biografia” ultrapassou as mil páginas. Lançado primeiro em inglês, o livro concorreu ao Prêmio Pulitzer, já saiu em Portugal e está sendo traduzido para o espanhol, o turco, o chinês e o coreano.

Nascido em Washington, em 1956, o biógrafo se aproximou de Pessoa no início dos anos 1980, no Brasil, onde lecionou na Universidade Federal de Santa Catarina. Desde 1987, vive em Lisboa. Traduziu Pessoa para o inglês e organizou diversas de suas obras, como “O livro do desassossego”.

— Apesar de ser muito português, é também muito brasileiro pois sua pátria era sua a língua. Pessoa é universal — diz. — Ele tem o dom de exprimir nossas angústias com mais eloquência do que nós mesmos.

Talvez porque ele próprio fosse uma multidão. Zenith contabilizou mais de cem heterônimos do poeta. Do primeiro deles, Chevalier de Pas, cavaleiro francês que se correspondia com o Pessoa de 6 anos, a Maria José, a única mulher, tuberculosa que escrevia cartas de amor a um serralheiro, passando pela Santíssima Trindade formada por Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis.

'Vulcânico'

Pessoa nasceu numa monarquia decadente e morreu durante a ditadura fascista de António Salazar (1933-1968). Assistiu à proclamação da República, em 1910, e a golpes militares. Ele também tinha um projeto político, representado pelo Quinto Império, aquele a ser inaugurado pelo próprio Dom Sebastião — o monarca desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, em 1578, mas que um dia haveria de ressurgir para restaurar a glória dos lusíadas.

A política do poeta era, no mínimo, contraditória — não à toa ele disse que um intelectual deveria mudar de ideia várias vezes ao dia.

Um de seus heterônimos, Antônio Mora, por exemplo, simpatizava com os alemães, mas Pessoa defendeu apoio aos aliados na Primeira Guerra Mundial. Temia que o golpe militar de 1926 conduzisse Portugal ao fascismo, mas defendeu a ditadura como um expediente necessário e temporário.

Mais à frente, no entanto, o poeta tornou-se antissalazarista. Rejeitou o nacionalismo de direita e o comunismo pela mesma razão: recusava que o indivíduo estivesse a serviço da coletividade.

— Pessoa era “do contra”. Era contrário à monarquia e apoiou a república, mas se desiludiu e foi se tornando um tanto reacionário — explica o biógrafo.

Era na arte que a política de Pessoa se realizava de fato. Seu Quinto Império, afirma Zenith, não era um projeto militar, mas poético. Ele sonhava com um novo Renascimento, desta vez capitaneado por sua pátria — a língua portuguesa — e convocou um exército de heterônimos que, nas trincheiras da prosa e da poesia, lutaram para refundar o Quinto Império na literatura.

Mas até que ponto o projeto político-poético de Pessoa foi bem-sucedido? Ele introduziu o modernismo em Portugal com a revista Orfeu, é verdade, mas publicou apenas um livro em português em vida: “Mensagem”, coletânea de poemas nacionalistas premiada pelo governo em 1934. Pessoa era indisciplinado, não concluía projetos (“O livro do desassossego” só saiu em 1982) e penava para organizar antologias.

Um amigo, César Porto, chegou a dizer que ele perdia tempo demais com os astros. Seu primeiro biógrafo, João Gaspar Simões, afirmou que os heterônimos eram sinal do fracasso de Pessoa em se dedicar à própria obra. Zenith discorda:

— Pessoa era um escritor vulcânico, sempre em busca da perfeição. Antes de terminar um projeto, já tinha a ideia do próximo. Deixou inacabados poemas fabulosos como “Saudação a Walt Whitman” e “Passagem das horas”, além de “O livro do desassossego”. Sua obra aberta nos convida a usar nossa imaginação para seguir as direções que ele apontou — afirma o biógrafo.

Aos 38 anos, Pessoa afirmou, com alguma ironia, “nunca ter realizado nada na vida”: “Nunca fiz um esforço verdadeiro por alguma coisa, nem apliquei minha atenção fortemente, a exceto a coisas fúteis, desnecessárias e fictícias”, escreveu.

Puro fingimento, como atesta sua obra. Pessoa podia até não querer ser nada, mas tinha em si todos os sonhos do mundo.

Capa de "Pessoa: uma biografia", de Richard Zenith (Companhia das Letras) — Foto: Reprodução
Capa de "Pessoa: uma biografia", de Richard Zenith (Companhia das Letras) — Foto: Reprodução

Serviço:

"Pessoa: uma biografia"

Autor: Richard Zenith. Tradução: Pedro Maia Soares. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 1.160. Preço: 199,90.

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