Ricardo Leite tinha 26 anos quando, in loco, frustrou-se por não ter conseguido publicar seus quadrinhos no mercado franco-belga e pegou um avião de volta para casa, no Rio. Era 3 de março de 1983, mesma data em que morreu Hergé, o criador de Tintim.
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Ironicamente, Leite abandonou o desenho de HQs, mas abraçou o design, criando capas de discos para bandas como Legião Urbana e Paralamas do Sucesso, e, pouco depois, o escritório Crama Design Estratégico, responsável por logos como os de Perinatal, Technos e GloboNews, entre outros.
O desejo de voltar à bande dessinée, como são chamados os quadrinhos por lá, nunca o abandonou. E, hoje, 40 anos depois daquela viagem, ele lança na Livraria Argumento, no Rio, a partir das 19h, a graphic novel “Em busca do Tintin perdido” (Noir), espécie de livro de memórias em que ele digressiona sobre sua escolha profissional enquanto faz um acerto de contas com o passado. Em pouco mais de 200 páginas, como uma espécie de personagem de Dickens, Leite recebe a visita de dezenas de autores e personagens dos quadrinhos, inclusive Hergé.
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— Curiosamente, eu estava num avião voltando para nosso país e as notícias da morte do Hergé deviam estar em todos os jornais de Paris... E Eu não vi —explica Leite. —Somente 30 anos depois, quando fui ao CBBD (Centro Belga dos Quadrinhos em Bruxelas) e vi o painel sobre a vida de Hergé, que tomei consciência dessa coincidência: é a data do meu aniversário!
Velho desejo
Leite diz que a trágica coincidência da morte de Hergé em seu aniversário de 26 anos lhe despertou muitos pontos.
— Em 1971, eu tinha escrito uma carta para Hergé dizendo que queria conhecê-lo. Conto isso no livro —lembra o designer.— Então, em 2013, no meu encontro metafórico com ele, através da ida ao Museu Hergé, senti como um recado, uma cobrança dele para mim: “Então, o que você vai fazer com o seu sonho que tanto desejou até os 26 anos? Vai passar por essa vida sem fazer ao menos uma boa HQ?”.
Leite chegou a publicar HQs curtas entre 1976 e 1983, mas havia abandonado sua produção até ser tomado por uma epifania ao visitar o Museu Hergé, em Louvaine-la-Neuve, cidade a 30km de Bruxelas, capital da Bélgica:
— Entrei lá às 10h e saí quando fechou, às 17h. Saí de lá doido, queria desenhar, fazer uma HQ... Mas ainda não sabia qual. Algum tempo depois que retornei, cristalizei que a história seria justamente sobre essa semana que passei em Bruxelas.
Resgate emocional
Como Leite sugere em seu livro, produzir “Em busca do Tintin perdido” foi a realização de um velho desejo, uma volta às origens, do prazer de ler e fazer quadrinhos.
— Foi um resgate emocional! O Ricardo que, em 2013, tinha 56 anos conversou profundamente com o Ricardo garoto, que tanto desejava ser quadrinista —entusiasma-se. — Por isso, as duas partes que mais gosto na HQ são meu encontro com o Little Nemo, representando-me criança no passado, e a passagem no antiquário, quando me vejo em muitas idades, especialmente comigo no futuro, mais velho. Isso é quase quântico, não é? Sou vários Ricardos. Daí, vem o título, uma clara alusão à obra de Marcel Proust.
Leite explica que o design que adotou como profissão tem tudo a ver com os quadrinhos, pois ambos contam histórias por meio de imagens.
—Ao me tornar designer, continuei a contar histórias. Fotos e ilustrações são imagens evidentes, mas a tipografia ou as manchas de textos podem e devem ser vistas como ilustração também. Até os espaços vazios são elementos gráficos que podem ser entendidos como “imagens” — explica ele. — Levei um bom tempo para entender que minha formação como leitor de quadrinhos me trouxe muitas referências como designer. Olho as capas de discos que fiz no início e percebo que raramente usava uma única foto. Pegue a capa e a contracapa de “Cinema Mudo”, dos Paralamas, meu primeiro disco (deles também, aliás), e verá que poderia ser uma página de HQ.
‘Em busca do Tintin perdido’
Autor: Ricardo Leite. Editora: Noir. Páginas: 224. Preço: R$ 149,90.