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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

Em outubro de 1949, Lúcio Cardoso (1912-1968) se pôs a especular sobre o “real motivo” por que insistia em manter seus diários. Não era por um “deleite íntimo” em rememorar o passado, pois “tudo o que morre é porque já teve o seu tempo”. Ele escrevia pensando “nos outros, nos amigos que nunca tive, naqueles a quem eu gostaria de contar estas coisas como quem faz confidências no fundo de um bar”. A quem almeja o “diabólico e raro prazer” de ouvir essas confidências, chega às livrarias nesta segunda-feira a mais completa edição já publicada dos diários de Cardoso, um dos primeiros escritores assumidamente homossexuais do país, que passou décadas esquecido e agora vem sendo redescoberto pelos leitores e pela academia.

A nova edição traz material inédito: uma crônica na qual ele recorda os tempos de escola e um texto em que supõe ter perdido os diários escritos entre 1942 e 1947, talvez roubados por um ladrão que imaginou que a caixa guardasse joias.

Os dois volumes de “Todos os diários” foram organizados por Ésio Macedo Ribeiro, que passou quatro décadas debruçado sobre a obra e os arquivos de Cardoso, recolhidos na Fundação Casa de Rui Barbosa. Ribeiro também organizou os “Diários” publicados em 2012 pela Civilização Brasileira, que esgotaram em quatro dias e passaram anos fora de catálogo. A nova edição contém o “Diário 0” (1942-1947), que Cardoso julgava perdido, mas foram localizados por Ribeiro; o “Diário I” (1949-1951), publicado em vida; o “Diário II” (1951-1962); o “Diário não íntimo”, coluna que o escritor manteve no jornal A Noite entre 1956 e 1957; e um punhado de textos esparsos. Em 1970, a José Olympio publicou o “Diário completo” do autor, uma edição cheia de lacunas e erros, posteriormente corrigidos pelo trabalho de Ribeiro, que afirma que Cardoso escreveu a obra confessional mais pungente das letras brasileiras, capaz de iluminar até sua ficção.

Nascido em Curvelo (MG), Cardoso viveu quase toda a vida no Rio e anotou, em 1950, que “não são os acontecimentos que fazem um diário, mas a ausência deles”. Embora registrasse seu cotidiano, ele escrevia sobretudo sobre as leituras que o inspiravam (Dostoiévski, Nietzsche, Gide), sua conflituosa relação com o catolicismo (Manuel Bandeira disse que o mineiro lutava consigo mesmo, com o destino e com Deus) e as dificuldades de levar adiante seus projetos (romances, peças teatrais e até filmes).

Ele também não poupava críticas a colegas de ofício, como Nelson Rodrigues (autor de uma peça “execrável”), José Lins do Rêgo (com quem chegou às vias de fato por uma piada homofóbica) e até Guimarães Rosa (“perdido pelo maneirismo”). Para a amiga Clarice Lispector, porém, era só elogios. Disse que o romance “A maçã no escuro” era “admirável, como tudo o que Clarice constrói e incendeia”. Ribeiro suspeita que a língua ferina de Cardoso e a homofobia contribuíram para que ele caísse no ostracismo após sua morte.

Manuscrito dos diários de Lúcio Cardoso — Foto: Fundação Casa de Rui Barbosa
Manuscrito dos diários de Lúcio Cardoso — Foto: Fundação Casa de Rui Barbosa

— Além de ser homossexual declarado naquela época, ele bebia demais e não poupava ninguém. Tudo isso o deixou à margem. Ninguém gosta de quem tem boca — diz Ribeiro, que lembra que Cardoso não escondia sua orientação sexual nem se envergonhava da boemia. — Ele morava em um apartamento em cima do Bar Lagoa e dava muitas festas. Uma vez, um convidado caiu nu em cima do toldo do bar! Dá para imaginar que festa era aquela, né?

Aqui me tens de regresso

Ribeiro, que também organizou a prosa completa do mineiro, encantou-se pela prosa “expressionista” e “plúmbea” de Cardoso no início dos anos 1980, quando suas obras só existiam em sebos. O resgate do autor de “Maleita” começou em 1998, 30 anos após a morte dele, com a reedição de “Crônica da casa assassinada”, sua obra-prima, e a adaptação cinematográfica de “O viajante”, de Paulo César Saraceni. Ganhou mais força em 2012, no centenário, com a publicação dos “Diários” e sobretudo no ano passado, quando a Companhia das Letras passou a reeditar sua obra. A editora, que lançou “Crônica da casa assassinada”, romance sobre a decadência de uma família mineira católica e incestuosa, promete uma antologia de contos para 2024 e um romance (ainda não definido) para 2025.

Autor do prefácio da edição da “Crônica da casa assassinada”, o jornalista e escritor Chico Fellitti se surpreendeu com o interesse dos jovens pela obra quando passou a falar dela em suas redes sociais:

— Era uma molecada que tinha uma relação muito afetuosa com o livro. É um catatau que assusta, mas a leitura é muito prazerosa e febril.

Também tem crescido o interesse pelo autor na academia. Há mais de cem trabalhos publicados sobre ele. Uma das razões é a busca por autores LGBT do passado para construir uma espécie de árvore genealógica da literatura queer brasileira. Nos diários, Cardoso falava de sua sexualidade com discrição. Em vários trechos, menciona um amante, mas substitui seu nome pela letra X. Fala ainda sobre visita a uma sauna e sobre uma parte de si que ele é “incapaz de falar”. Diz que Deus lhe deu “todos os sexos” e que o prazer sem amor “não tem atrativos”. E afirma que a homossexualidade é “um esforço da natureza para se realizar até mesmo sem os meios adequados”.

Doutor em Literatura pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Daniel Moreira lembra que Cardoso tinha a intenção de publicar seus diários e, em meados do século passado, um autor que escrevesse sem pudores sobre a homossexualidade corria o risco da rejeição de editores e leitores. Embora de forma “oblíqua”, ele foi o primeiro escritor brasileiro a falar sobre a homossexualidade na primeira pessoa, diz o pesquisador:

— O texto de Cardoso não nos parece transgressor hoje, mas era na época. Ao contrário do amor heterossexual, não havia ainda uma linguagem literária consolidada para falar do amor homossexual. Ele precisou inventar essa linguagem, negociando seu desejo de abordar o tema e os riscos de escrever sobre isso.

Antes de botar o ponto-final no “Diário I”, reconheceu que alguns leitores provavelmente reclamariam de sua discrição ao tratar “a questão sexual”. Mas perguntou: “Que adiantaria estampá-la, destituída de força, apenas para catalogar pequenas misérias sem calor e necessidade?” E continuou: “Por outro lado, procurei, para com as minhas ideias e os meus sentimentos, ser tão exato quanto possível.”

Leia trechos inéditos de 'Todos os diários'

“O meu tempo de estudante é composto de vários fragmentos, pois estudei em quatro ou cinco colégios diferentes. É verdade que, tudo somado, a experiência é a mesma. Não ando longe de afirmar que era uma certa repulsa o que os meus professores sentiam em relação àquela criatura selvagem, silenciosa, que não penteava os cabelos e não prestava atenção a coisa alguma. Não me era difícil perceber que alguma coisa se passava, mas só hoje posso considerar tranquilamente que no íntimo eles me achavam um ‘caso perdido’ e me tratavam como uma espécie de exemplo a não ser imitado. Não é preciso dizer que não tinha amigos e que não os suportava também. Nessa época, tudo para mim era desordem, mal-estar, escuridão.”

“Durante longo tempo este caderno foi o único laço que me unia a tudo o que me pertencia e a que eu prezava como o mais decente e o mais belo, e hoje, revendo-o para largá-lo às mãos do editor, não é sem um certo sentimento pungente, e uma tristeza de imaginar todos esses caminhos tão duramente percorridos que assalta — tristeza, e não temor de nenhuma espécie. Alguns leitores fortuitos aconselharam-me a que não publicasse isto, tendo em vista a má-fé geral com que se acolhe publicação desta espécie. Concordei, e retive os cadernos algum tempo em mãos. Não os retenho mais, exatamente porque me julgo longe da crise que me afetou.”

Serviço:

‘Todos os diários — Volume 1’

Autor: Lúcio Cardoso. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 448. Preço: R$ 139,90.

‘Todos os diários — Volume 2’

Autor: Lúcio Cardoso. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 424. Preço: R$ 134,90.

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