Música
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Por Silvio Essinger — Rio de Janeiro

Por volta dos seus 42 anos de idade, Caetano assumiu a perspectiva do “homem velho” em notória canção do álbum “Velô” (1984). E cantou: “Ele já tem a alma saturada de poesia, soul e rock’n’roll / as coisas migram e ele serve de farol”. Os versos não poderiam ser mais exatos/proféticos para esse baiano que chega hoje aos 80 anos gozando de saúde e lucidez — e em plena atividade, como se há de se conferir na live que ele faz à noite com a família, transmitida a partir das 20h30 pelo Globoplay e pelo Multishow.

As coisas migram, os cabelos brancos tomam a fronte do artista e o menino, que antes corria, agora o vê como o “vovô nervoso, teimoso, manhoso” (dito na recente canção “Não vou deixar”). Principalmente teimoso: um vovô que insiste em — e muitas vezes consegue — manter-se relevante num mundo vergado às vontades dos adolescentes, embora um pouco mais equipado do que antes para ouvir o homem velho.

Artistas do mundo homenageiam Caetano

Em 2022, Caetano Veloso está em um lugar para lá de confortável: praticamente tudo que se identifica como música popular brasileira encontra espelho em sua obra. “Se você tem uma ideia incrível/ é melhor fazer uma canção”, avisou ele, com alguma ironia, em “Língua”, outra das faixas de “Velô”. De Ferrugem, Gloria Groove, Maiara e Maraísa, Baco Exu do Blues (e “gente pra xuxu”, como listou, rimando, em “Sem samba não dá”, faixa de “Meu coco”, álbum de 2021), muita gente segue hoje, com êxito (mesmo que instintivamente) a recomendação.

Do início sob a influência da bossa, passando pelo Tropicalismo (do qual foi o artífice, atentando para a importância da geleia geral de Gil, Beatles, Chacrinha e Vicente Celestino), Caetano tem sido um apóstolo do poder da canção popular em mover montanhas. Ele é, ao mesmo tempo, o cantautor de hits que alternam lirismo (“Leãozinho”, “Você é linda”) e contundência (“Podres poderes”, “Fora da ordem”), o compositor certeiro (ouça “Força estranha” com Roberto Carlos) e o cantor que descobre novos ângulos em composições alheias (como em “Sozinho”, de Peninha, que o fez vender milhão).

Filho de uma família da classe média esclarecida da pequena Santo Amaro, o artista cuidou, ao longo da carreira, de borrar as distinções entre alta e baixa cultura. Suas canções filosofaram no alemão das vanguardas musicais e roçaram a língua na língua de Luís de Camões dos alto-falantes do Brasil profundo. Eventualmente em inglês e espanhol, elas estabeleceram pontes com o mundo, o qual — do escocês-americano David Byrne ao argentino Fito Páez — detectou em Caetano um tipo singular e abrangente de artista, que não cabe nas categorias anglo-saxãs, dominantes, da música popular.

Com seu espírito tropicalista, Caetano acendeu luzes aqui e ali. Foi ao vê-lo vestido inteiro de rosa, nos anos 1960, que Ney Matogrosso decidiu tornar-se o artista que sempre quis ser. O comportamento é, em muitos casos, a política deste baiano: leitor voraz que recusou o sectarismo e os reducionismos, abraçou as próprias contradições e idiossincrasias e sempre defendeu com fervor as suas opiniões — as quais raramente se furtou a dar, bem consciente da dor e da delícia de ser o que se é.

Questões sexuais, afetivas, raciais, históricas e existenciais, todas elas foram contempladas em suas canções, livro (“Verdade tropical”), filme (“Cinema falado”) e entrevistas.

Mesmo sob ataques dos intelectuais estabelecidos, Caetano foi, ao longo da carreira, sendo reconhecido, ele mesmo, como uma espécie de intelectual — se não “orgânico”, na acepção de Antonio Gramsci, ao menos muito popular, haja vista a ressonância que fragmentos de suas letras e declarações tiveram no imaginário brasileiro, chegando ao universo dos memes. Filie-se ou oponha-se ao baiano, o que não dá é para ignorá-lo.

Octogenário, o Caetano que sopra as velinhas é, em grande medida, o mesmo de sempre. É o artista que ainda perde noites de sono pensando no papel do Brasil no mundo e que, após tantas voltas por este mesmo mundo, ainda se sente na necessidade de dizer que “sem samba não dá”. É o cantor que não experimentou declínio de criatividade ou afetos. Que aos 64 anos achou melhor largar tudo e fazer um disco de indie rock com os amigos do filho. E que em 1984, imaginando-se velho, cantou pela primeira vez: “Os filhos, filmes, ditos, livros como um vendaval/ espalham-no além da ilusão do seu ser pessoal.”

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