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Morreu este sábado em Lisboa, aos 85 anos, a escritora e integrante da Academia Brasileira de Letras Nélida Piñon. A ABL está providenciando o traslado do corpo, que será velado no Petit Trianon. A Sessão da Saudade será realizada na reabertura dos trabalhos da Academia, no dia 2 de março.

Em Lisboa, onde estava há três meses, Nélida teve um problema de vesícula. Ao ser examinada, descobriu que estava com entupimento dos vasos biliares e precisou fazer uma operação. Segundo amigos, a escritora estava se recuperando bem da cirurgia, mas este sábado, ainda no hospital, sofreu complicações e não resistiu.

Segundo o presidente da ABL, Merval Pereira, "estamos em recesso de fim de ano, mas abriremos a casa para fazer o velório. E, em seguida, Nélida será sepultada no mausoléu da ABL no Cemitério São João Batista, onde já repousa a sua mãe".

Carioca, Nélida Piñon foi a primeira mulher a se tornar presidente da ABL, entre 1996 e 1997. Ela deu seus primeiro passos na Academia em 27 de julho de 1989, quando foi eleita para a cadeira que tem por patrono Pardal Mallet, e da qual foi a quinta ocupante. Ela tomou posse em 3 de maio de 1990, recebida por Lêdo Ivo. Sua obra, que contempla conto, romance, crônica, memória e ensaio, foi traduzida em mais de 30 idiomas.

Jornalista, romancista, contista e professora, Nélida Piñon nasceu em 3 de maio de 1937, em Vila Isabel, filha de Lino Piñon Muiños, comerciante, e Olívia Cuiñas Piñon, ambos originários da Galícia. O seu nome é um anagrama do nome do avô, Daniel. Na infância, seus pais a estimularam a ler, deram-lhe livros e levaram-na a viajar. Aos dez anos de idade, Nélida foi para a terra dos pais, onde ficou dois anos. Essa vivência se refletiu em sua obra, que fala do amor por duas pátrias: a Galícia e o Brasil.

Ainda criança, Nélida montou sua biblioteca. Literalmente: a menina escrevia histórias em folhas avulsas e costurava-as, montando “livros” que guardava carinhosamente na estante. Quando ela fez 12 anos, seu pai abriu para ela uma conta na livraria Freitas Bastos, no Largo da Carioca. Toda a semana, ela ia de Vila Isabel até o Centro do Rio para escolher um livro.

— Nunca meu pai nem minha mãe fiscalizaram o que comprei, se era livro proibido, erótico, pornográfico, nada. Foi um privilégio terem essa visão progressista, queriam que eu fosse uma menina culta— contou a escritora, em sua última entrevista ao GLOBO, em junho.

Formada em Jornalismo pela Faculdade de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio, Nélida Piñon trabalhou em revistas, foi colunista do jornal “O Dia” e exerceu cargos nos conselhos consultivos de entidades culturais da cidade. Sua estréia na literatura se deu em 1961, com a publicação do romance “Guia-mapa de Gabriel Arcanjo”, que trata do tema do pecado, do perdão e da relação dos mortais com Deus através do diálogo entre a protagonista e seu anjo da guarda.

Nélida Piñon, em Friburgo, escrevendo Guia Mapa de Gabriel Arcanjo — Foto: Divulgação | Piñon Produções
Nélida Piñon, em Friburgo, escrevendo Guia Mapa de Gabriel Arcanjo — Foto: Divulgação | Piñon Produções

Desde o início de sua carreira, Nélida Piñon buscou, assim como Guimarães Rosa, a renovação formal da linguagem. No romance “Fundador”, publicado em 1969, ela abandonou a base realista que comanda a criação literária analógica do mundo e pôs em cena personagens históricos e ficcionais, criando um mundo eminentemente estético. Em 1972, publicou “A casa da paixão”, romance em que abordou o tema do desejo e da iniciação sexual.

Em 1984, Nélida lançou o romance autobiográfico “A república dos sonhos”, narrando a saga de uma família enraizada na Galícia que emigra para o Brasil. Em “A doce canção de Caetana”, romance de denúncia política de 1987, fez uma incursão ao universo de uma cidade do interior, Trindade, à época do milagre brasileiro. Já no livro “O pão de cada dia”, de 1994, Nélida deixou de lado a moderna ficção na qual se consagrou e empreendeu uma reflexão profunda sobre as inquietações do homem, através de fragmentos que exprimem emoções, ideias e pensamentos.

Nélida Piñon foi vencedora do Prêmio Jabuti duas vezes, em 2005, com “Vozes do deserto”, que ganhou nas categorias de melhor romance e de livro do ano de ficção. Nele, a escritora recriou a história das “Mil e Uma Noites” e pôs Scherezade no papel de mulher transgressora a romper as amarras de uma sociedade patriarcal. Em seu último livro, “Um dia chegarei a Sagres”, de 2020, Nélida não se furtou a abordar a tensão sexual que aflora entre dois personagens masculinos.

— A nossa sociedade não enseja que o ser humano possa expandir seu erotismo, que, de certo modo, é condenado. Não é de bom tom você acolher as manifestações eróticas com naturalidade. O erotismo depende da imaginação. E a imaginação da pessoa cobra um corpo para poder executá-la. Então, no livro, é indispensável. E ele (o narrador Mateus) era novo, tinha um corpo poderoso. Acho o sexo uma das áreas mais misteriosas do indivíduo. O sexo é, vamos dizer, o casulo humano — disse a escritora, ao GLOBO.

Prêmios no Brasil e no exterior

Prêmios não faltaram a Nélida Piñon. Ela ganhou o Mário de Andrade por “A casa da paixão” (1973), os da Associação Paulista de Críticos de Arte e o de Ficção Pen Clube por “A República dos sonhos”, o da União Brasileira de Escritores de São Paulo por “A doce canção de Caetana” e o Golfinho de Ouro pelo conjunto da obra.

Em 1995, tornou-se a primeira mulher (e autor em língua portuguesa) a receber o Prêmio Internacional de Literatura Juan Rulfo, o mais importante da América Latina e do Caribe. E em 2005, desbancando colegas como o israelense Amos Oz e os americanos Paul Auster e Philip Roth, Nélida Piñon ganhou o Príncipe de Astúrias de Las Letras, o maior prêmio espanhol de literatura — foi a primeira brasileira a receber a distinção.

A escritora Nélida Piñon, em 2005, na Espanha, recebendo o prêmio Príncipe de Astúrias — Foto: AFP
A escritora Nélida Piñon, em 2005, na Espanha, recebendo o prêmio Príncipe de Astúrias — Foto: AFP

Em relação à vida pessoal, Nélida dizia apreciar a solidão. Uma de suas grandes diversões era passear com seus cachorros, a pinscher Suzy Piñon e a chihuahua Pilara Piñon.

— Adoro a solidão quando a quero. Não é a solidão de quem padece do repúdio alheio, sou uma mulher das amizades. Tive tempo de ser uma pessoa mundana, no sentido da vida social, dos amigos, dos jantares, das viagens... Agora, como escritora, preciso ficar sozinha, e fico. Em casa, sou muito alegre. Adoro ver a cozinha, classifico as comidas. Depois de trabalhar oito, nove horas, ponho um programa gastronômico. Discuto com os chefs, acho que eles abusam dos temperos — disse ao GLOBO em 2020.

A escritora Nélida Piñon com a sua chihuahua Pilara — Foto: Leo Aversa
A escritora Nélida Piñon com a sua chihuahua Pilara — Foto: Leo Aversa

Presidente da Academia Brasileira de Letras, Merval Pereira lamentou a morte da colega e amiga.

— Nélida era uma pessoa queridíssima. Além de grande romancista, uma das maiores escritoras do Brasil, uma pessoa formidável que adorava a vida. Nos últimos anos, estava com um problema de visão, mas não deixava de ler nem de escrever, com letras imensas, e continuava indo à ABL. Ela era a minha secretária geral, saiu para ficar uns meses fora, em Portugal, e voltaria ao Brasil no início de 2023 — diz. — Ela era muito empenhada no feminismo moderno. De alguma forma, embora fosse muito viva, de alguma forma já estava preparando a sua partida. Terminou de organizar o arquivo dela, doou livro, cartas, bilhetes, cartaz, uma parte para a Fundação Cervantes e outra para a ABL.

O escritor e imortal Antônio Carlos Secchin comentou a paixão que a escritora tinha pelas palavras:

— Vemos em Nélida um exemplo extraordinário de escritora que combinava temas até contraditórios. Tinha uma imensa capacidade de criar histórias, de imaginar mundos muito complexos, e um sentido pragmático de conduzir a sua vida. Era uma sonhadora e uma realista.

Colunista do GLOBO, a jornalista Míriam Leitão reforçou a tristeza e o luto na literatura, lembrando que a obra da escritora era marcada pelo combate ao preconceito à sexualidade feminina e pela luta a favor da liberdade, em plena ditadura militar:

— Ela tinha a capacidade de amar a vida e buscar a liberdade. Perdi uma amiga com quem gostava de conversar.

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