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Por Emiliano Urbim — Rio de Janeiro

Perturbador. Grotesco. Violento. Confuso. Estes foram alguns dos adjetivos usados nas resenhas que saudaram a chegada de “O homem da areia”, longo conto sobre um sujeito perturbado por uma visão da sua infância incluído no livro “Peças noturnas”, lançado em 1816 pelo alemão E.T.A. Hoffmann (1776-1822). Goethe, guru intelectual da época, pegou pesado: chamou o texto de “sonhos febris de um cérebro volúvel e doentio” e “imaginações produzidas pelo uso exagerado do ópio”. Mas Hoffman insistiu: morreria seis anos depois com uma obra ampla, ainda que nem sempre bem recebida, não só na literatura, mas também na crítica e na composição de música — o “A” de E.T.A. era “Amadeus”, que adotou em homenagem a Mozart.

Mas o jogo virou. Hoje, Hoffman é reconhecido como um inovador do Romantismo e precursor da literatura fantástica e psicológica, inspirando a escrita das gerações seguintes, um importante conceito de Freud e adaptações em outras artes. Já “O homem da areia” é um dos contos mais lidos da literatura ocidental — sendo relançado agora pela Ubu em edição com tradução de Marcella Marino M. Silva e José Feres Sabino e ilustrada com cerca de 30 obras inéditas de Eduardo Berliner.

Obra de Eduardo Berliner na nova edição que a editora Ubu lança de "O homem de areia", de E.T.A. Hoffmann  — Foto: Divulgação
Obra de Eduardo Berliner na nova edição que a editora Ubu lança de "O homem de areia", de E.T.A. Hoffmann — Foto: Divulgação

Um resumo ajuda a entender por que a narrativa chocou os resenhistas germânicos no início do século XIX. A história começa com uma troca de cartas na qual o leitor fica sabendo que o estudante Nathanael teve um encontro com um vendedor ambulante que ele crê ser o mesmo homem misterioso que fazia experimentos de alquimia que levaram à morte de seu pai quando ele era pequeno — mas pode ser só “o homem da areia” que sua babá dizia que trazia o sono às crianças.

Em seguida, quem assume as rédeas é um narrador indiscreto e arrebatado que oscila entre o realismo e alucinação — com pitadas de “romance gótico, de história de fantasma e de amor, de relato médico, e também de história da formação fracassada de um artista”, escreve no posfácio Márcio Suzuki, professor de Estética no departamento de Filosofia da USP. “Todo o empenho da narrativa é suscitar a dúvida, a hesitação, a incerteza”, completa.

De brinde, o conto traz uma robô a quem Nathaniel submete para avaliação e consultoria “tudo o que já havia escrito”. “Lia em voz alta, peça após peça, horas a fio, para Olímpia, sem se cansar. Mas, pudera, ele jamais havia tido tão excelente ouvinte”, escreve Hoffmann. É você, 200 anos antes, ChatGPT?

"O homem da areia." Autor: E.T.A. Hoffmann. Editora: Ubu. Tradução: José Feres Sabino e Marcella Marino M. Silva. Páginas: 112. Preço: R$ 79,90.

‘Quando fiquei perdido, vi que estava no caminho’


Eduardo Berliner fala sobre como foi criar as cerca de 30 obras inéditas que estão na versão da ubu para a história

O artista Eduardo Berliner em seu antigo ateliê, onde realizou as obras das mostras “A presença de uma ausência” e o “Projeto restauração”  — Foto: Fábio seixo
O artista Eduardo Berliner em seu antigo ateliê, onde realizou as obras das mostras “A presença de uma ausência” e o “Projeto restauração” — Foto: Fábio seixo

Foi em 2022 que a designer Elaine Ramos, diretora de arte da editora Ubu, entrou em contato com o artista Eduardo Berliner. A proposta: ilustrar uma nova edição de “O homem da areia”, conto clássico de E.T.A. Hoffmann que, acreditava ela, tinha uma atmosfera que dialogava com o trabalho do pintor. O carioca conhecia o conceito que Freud tinha criado a partir da leitura da história, de “inquietante”, mas não o texto em si. Ao ler, concordou.

— Tem pontos de contato. Mas nem tanto pelo aspecto do tétrico e do terror. O que me interessou mais ali é a complexidade com que o conto parece falar sobre memória e inconsciente. Já começa fragmentado, com três cartas dando versões sobre fatos do passado. E é como a gente constrói as memórias: vive, reflete, ouve alguém falar... e a lembrança vai sendo deformada. Isso ecoa na minha obra — diz o artista, que em setembro inaugura uma exposição individual na galeria Triângulo, em São Paulo.

Ele conta que às vezes guarda um trabalho por anos até resgatá-lo e uni-lo a algo novo:

— Me interessa como um trabalho afeta o outro, a tensão entre eles. Nesse livro, ainda há o jogo entre texto e imagens, que seguem a narrativa.

Berliner é formado em Comunicação Visual na PUC-Rio, onde por muito tempo deu aula de Tipografia (“uma paixão que precisou dar lugar à pintura”, ele diz). Desde que venceu o prêmio Marcantonio Vilaça, em 2010, e foi finalista do prêmio Pipa, em 2011, Berliner tem se destacado no cenário das artes plásticas brasileiras com obras, na falta de uma definição melhor, inquietantes.

Sobre seu trabalho, a crítica Daniela Labra escreveu: “Ainda que não siga na direção de elaborar uma obra totalmente imaterial, as pinturas de Berliner carregam no dado conceitual e surpreendem com a reflexão sobre o humano espelhado nos artefatos e ambientes absurdos retratados, os quais, ascéticos em sua maioria, comprovam a existência do ser humano no mundo”.

Obra de Eduardo Berliner na nova edição que a editora Ubu lança de "O homem de areia", de E.T.A. Hoffmann  — Foto: Divulgação
Obra de Eduardo Berliner na nova edição que a editora Ubu lança de "O homem de areia", de E.T.A. Hoffmann — Foto: Divulgação

A primeira vez que Berliner desenvolveu trabalhos com base em um texto literário foi para as “Fábulas completas” de Esopo, publicadas pela Cosac Naify em 2013. Depois, ilustrou os livros de Walter Hugo Mãe publicados pelo selo Biblioteca Azul, da Globo Livros.

Desta fez, foram oito meses para realizar os cerca de 30 trabalhos que estão em “O homem da areia”. O processo se deu em seu novo ateliê — após anos em Botafogo, agora está trabalhando na Lapa.

— Não tinha um plano de antemão — diz Berliner. — À medida que fui fazendo o trabalho, fui ficando perdido. E à medida que fui ficando perdido, eu vi que estava no caminho certo.

Em 200 anos, conto inspirou escritores, óperas e animações

Além de servir como referência na literatura, obra repleta de sugestões sonoras e visuais foi fonte para compositores e cineastas

 Montagem de 2022 da ópera “Os contos de Hoffmann”, em NY — Foto: Divulgação
Montagem de 2022 da ópera “Os contos de Hoffmann”, em NY — Foto: Divulgação

Porque nunca é demais citar Shakespeare, o texto de “O homem da areia” é cheio de som e fúria. Hoffmann recheou sua história fantástica com referências sonoras (uma personagem “tocou piano com grande habilidade e cantou uma ária de bravura com voz límpida e quase cortante de sino de vidro”) e imagens impactantes (que tal o delírio em que o vilão Coppelius pega um casal e “os joga numa roda de fogo chamejante que gira com a velocidade de um vendaval, e o fogo os consome em instantes”?), e contém ainda uma das cenas de dança mais famosas da literatura (sem spoilers).

Tal atmosfera dramática pede um palco, e só no século XIX a história foi adaptada como um balé e nada menos que três óperas — a mais famosa delas é “Os contos de Hoffmann”, do alemão Jacques Offenbach (1819– 1880), que fez sucesso com a personagem Olímpia, uma autômata com personalidade. Ano passado, aliás, esteve em cartaz no Met Opera, em Nova York.

Em 2007, a banda americana metida a coletivo artístico The Residents lançou um álbum inteiro baseado na narrativa, chamado “The voice of midnight”.

O conto também inspirou um curta realizado com a técnica de stop-motion indicado ao Oscar em 1991, “The sandman”, e, mais recentemente, um longa de animação russo, “Hoffmaniada”, de 2018.

Curta “The sandman” concorreu ao Oscar de animação em 1991 — Foto: Divulgação
Curta “The sandman” concorreu ao Oscar de animação em 1991 — Foto: Divulgação

Apesar do nome, o conto não tem relação direta com o quadrinho “Sandman”, de Neil Gaiman, mas a lista de escritores que Hoffmann inspirou não está no gibi.

Em ordem cronológica, pois por grandeza é impossível: Edgar Allan Poe, Gógol, Charles Dickens, Baudelaire, Dostoiévski, Kafka, até o cineasta Alfred Hitchcock (ok, segue um semi-spoiler: há um “corpo que cai” em “O homem da areia”).

Como escreveu Ítalo Calvino: “‘O homem da areia’ me parece o conto mais representativo do maior autor fantástico do século XIX. (...) A descoberta do inconsciente ocorre precisamente aqui, na literatura romântica fantástica, quase cem anos antes que lhe seja dada uma definição teórica.”

Só Freud explica

Pai da psicanálise criou conceito de ‘inquietante’, que se refere a algo que é estranhamente familiar, baseado na narrativa de Hoffmann

Sigmund Freud era fascinado pela ficção de Hoffmann  — Foto: AP
Sigmund Freud era fascinado pela ficção de Hoffmann — Foto: AP

Quase cem anos após seu lançamento, ao cair nas mãos e na mente de Sigmund Freud (1856–1939), o conto “O homem da areia” inspirou o pai da psicanálise a criar o que chamou de Das unheimliche. É um termo difícil de traduzir por ter muitos significados já no original, em alemão, onde pode ser usado como “medonho” ou “sinistro”. Na maioria das traduções de Freud no Brasil, no entanto, chamado de “o inquietante” — nome de um ensaio publicado por Freud em 1919.

Muito basicamente, o conceito se refere a algo (uma pessoa, uma sensação, um acontecimento, um relacionamento) que é estranhamente familiar, o que nos provoca uma sensação de angústia, confusão e até terror. No conto, E.T.A. Hoffmann alerta: “suportar o estranho não é pouca coisa”. E é terror que o protagonista Nathanael sente ao imaginar que um velho alquimista envolvido na morte de seu pai estaria se fazendo passar por um vendedor ambulante.

Freud vai além, dizendo que o nome do alquimista (Coppelius) e o do vendedor (Coppola) remetem aos olhos: “coppa” em italiano significa “órbita ocular”, o que, na interpretação freudiana, indicaria que o conto trata inconscientemente do medo da cegueira, isto é, simbolicamente, do medo da castração.

Estudiosa da obra de Hoffmann, a professora Maria Aparecida Barbosa, da UFSC, diz o conceito freudiano de duplo (doppelganger) se manifesta nos pares de personagens do conto areia” (Coppelius e Coppola, Clara e Olímpia, o pai de Nathanael e Spalanzani) — e mais ainda no romance “Os elixires do diabo”, que ela traduziu e saiu ano passado pela Estação Liberdade.

— Hoffmann vivia em um meio intelectual onde já circulavam as primeiras descobertas do que ainda viria a ser a psicologia — conta a especialista. — Era uma assunto que dava medo nas pessoas. Mas ele adorava os mistérios da mente humana, queria explorar isso.

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