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Por — São Paulo

Na passagem da década de 1970 para 1980, os jornalistas brasileiros que trabalhavam da Europa não tiravam os olhos da Espanha. O general Francisco Franco era morto (1892-1975) e o país enfim enterrava a ditadura fascista iniciada em 1936. Colaboradora da revista IstoÉ em Paris, a carioca Rosa Freire d’Aguiar ia a Madri atrás não só de notícias, mas também de lições para o Brasil, que na mesma época ensaiava sua transição “lenta, gradual e segura” da ditadura para a democracia. Em 1978, os espanhóis promulgaram uma nova Constituição que consagrava as liberdades democráticas e, em 1982, elegeram o primeiro-ministro socialista Felipe Gonzalez. Também reformaram o exército, sustentáculo do regime franquista, para evitar aventuras golpistas no futuro.

— Era como se a Espanha nos dissesse: “eu sou, vocês serão amanhã” — recorda Rosa, que hoje vive entre o Rio e Paris. — Na época, estávamos muito entusiasmados. Depois da Anistia (1979), tínhamos esperança de que o Brasil tomasse para valer o trilho da redemocratização e das mudanças. Nós, jornalistas, tínhamos vontade de mostrar onde isso estava dando certo. No fundo, nossas matérias diziam: “vejam só como é possível mudar”. Eu virei do avesso a nova Constituição espanhola atrás do que podia servir de exemplo ao Brasil!

Tradutora premiada de autores franceses como Balzac, Proust e Céline, Rosa rememora sua vida de repórter na capital francesa no livro “Sempre Paris: crônica de uma cidade, seus escritores e artistas”, que ela lança nesta terça-feira (7), às 19h, na Livraria Megafauna, em São Paulo. No primeiro terço do livro, a carioca conta os bastidores de reportagens feitas nos anos 1970 e 1980 sobre a revolução da culinária francesa (“a nouvelle cousine era a moda do quanto maior a conta, menor a quantidade”), e eleição do socialista François Mitterrand (que assustou até capitalistas brasileiros) e a emergência do novo sindicalismo polonês (que acelerou a decomposição do comunismo), entre outros assuntos. O restante do livro é preenchido por 21 entrevistas (algumas delas inéditas) com protagonistas da cultura do século XX, como o semiólogo Rolland Barthes (que decretou a morte do autor), o escritor Georges Simenon (autor das aventuras do inspetor Maigret) e a filósofa Élisabeth Badinter (que questionou o mito do amor materno).

Em setembro de 1973, aos 24 anos, Rosa aterrissou em Paris para ser correspondente da revista Manchete. No mês seguinte, a crise do petróleo (consequência da Guerra do Yom Kippur, entre árabes e israelenses) condenou o mundo ao aperto financeiro. Os “Trinta Anos Gloriosos”, as décadas de prosperidade que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, chegavam ao fim. Com olhar atento de repórter, ela registrou as mudanças pelas quais o mundo passava e cobriu conflitos que ainda hoje continuam no noticiário.

Em 1980, foi à Faixa de Gaza, onde conheceu uma menina palestina que desaprendera a falar e só repetia “alhudud” (fronteira, em árabe) depois que soldados israelenses fincaram uma cerca de arame farpado em frente à sua casa. Em 1982, viu corpos se decompondo nas ruas durante a guerra entre Israel e Líbano. Anos antes, cobrira a Revolução Islâmica do Irã. Para não derrapar na grafia dos complicados nomes persas, desenhou um organograma do governo revolucionário na parede de casa. Chegou a perguntar ao aiatolá Khomeini, líder supremo da revolução, como seriam tratadas as mulheres na República Islâmica. “Desfiou um rosário edificante: as mulheres teriam um tratamento humano, respeitoso, digno... Eu deveria ter desconfiado”, escreve Rosa.

— O aiatolá pintava um mundo que era uma maravilha, mas um exilado iraniano que me contou de um promotor que estuprava as prisioneiras na véspera da execução, com a desculpa de que o Islã proibia a condenação de virgens à morte — diz ela.

Em Paris, Rosa convivia com exilados brasileiros e testemunhou as mesquinharias da ditadura, que dificultava a renovação de passaportes e o registro das crianças nascidas por lá. Até se casou com um exilado, o economista Celso Furtado (1920-2004). Acompanhou-o de volta ao Brasil quando ele se tornou ministro da Cultura do governo José Sarney e, para evitar conflitos de interesse devido à proximidade com o poder, trocou o jornalismo pela tradução.

Rosa não tem saudades da correria da reportagem diária, mas sim de fazer entrevistas. É só ler as entrevistas reproduzidas em “Sempre Paris” para entender por quê. Ela viu Fernand Braudel, um dos maiores historiadores franceses, cantarolar a marchinha “Sassaricando”. Escutou a atriz Norma Bengell reclamar que os franceses eram machistas e não sabiam amar. O escritor argentino Julio Cortázar lhe disse que alguns intelectuais faziam o jogo da ditadura em seu país “porque são velhos — ou cegos” (ele se referia ao veterano Jorge Luis Borges, que de fato já não enxergava).

Não era fácil preparar entrevistas naqueles tempos pré-internet. Para arrumar assunto, Rosa recorria a biografias, revistas especializadas e até “pré-entrevistas” com entendidos.

— Antes de entrevistar Simone Veil (ministra da Saúde que legalizou o aborto na França), conversei com a líder do movimento de prostitutas de Paris, que pedia mais direitos e uma legislação menos severa. Ela me falou uma série de coisas e inclui uma ou duas perguntas sobre prostituição e saúde pública na entrevista. Era assim: você conversava com uma pessoa para pegar sugestões de perguntas para outra — explica. — Hoje, eu talvez não tivesse coragem para fazer algumas perguntas mais petulantes. Por exemplo, cutuquei Raymond Aron (sociólogo), que era o grande da direita francesa, sobre a rivalidade dele com (Jean-Paul) Sartre (filósofo). Em Paris, diziam que era melhor estar errado com Sartre do que certo com Aron.

Rosa perguntou a Aron quem mais influenciara sua época: os editoriais dele e ou os manifestos de Sartre, que sempre se manteve à esquerda. O sociólogo disse que seus editorais “tiveram êxito”. E que Sartre influenciara os jovens, mas nunca a política.

Capa de "Sempre Paris: crônica de uma cidade, seus escritores e artistas", de Rosa Freire d'Aguiar — Foto: Reprodução
Capa de "Sempre Paris: crônica de uma cidade, seus escritores e artistas", de Rosa Freire d'Aguiar — Foto: Reprodução

Serviço:

‘Sempre Paris’.
Autora:
Rosa Freire d’Aguiar. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 360. Preço: R$ 89,90.

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